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Estávamos todos à tua espera

No dia em que chegaste a este mundo, estava eu numa outra festa de aniversário. No instante em que o sopro apagou as velas e um sonante aplauso ecoou na sala, não sabia sequer que já tinhas nascido. Suspeitava, porém, que isso estava prestes a acontecer. Tentava distrair-me a todo o custo. De copo na mão, quase me obrigava a abanar timidamente o tronco ao ritmo da música alegre, que contrastava de forma evidente com o meu semblante baço e distante. Queria ignorar, esquecer, apagar da minha memória o dia em que o teu pai me contou que haverias de vir ao mundo daí a poucos meses. Nunca imaginei que o nascimento de um bebé pudesse transtornar-me tanto. Nesse dia lembro-me de ter chorado. De ter chorado muito. Tanto, tanto que terá sido o suficiente para não o conseguir voltar a fazer nos meses seguintes. À enxurrada seguiu-se um longo e árido período de seca lacrimal. Hoje, à distância dos anos que nos ajudam a entender mesmo as coisas que parecem não ter justificação, arrependo-me de cada pensamento atroz, de cada momento em que cheguei a desejar que nunca tivesses chegado a nascer. Cada ser que nasce é um milagre. Que triste o mundo teria ficado se nunca tivesse chegado a ver-te. Que génio poderia ter ficado por se revelar se a tua mãe e o teu pai não tivessem cedido aos prazeres da carne por uma só noite que fosse. Talvez nunca tenhas sido desejada por pai nem mãe em pleno acto da concepção. Mas hoje, ao impores a cada dia a tua presença, ao fazeres de cada sorriso uma alegria comum, ao permitires que a tua beleza se transforme num elogio à mãe natureza, todos estamos gratos por existires. E é por isso que gritamos hoje em uníssono, neste preciso instante em que estarás, uma vez mais, a soprar as velas: obrigada por teres vindo, o mundo estava ansioso à tua espera.

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