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A vida num segundo

O que estaria a pensar aquele rapaz, de ar sereno, que atravessava a passadeira no final de mais um dia de trabalho? A noite havia chegado mais cedo. Perto das seis da tarde, já era escuro como o breu. E ele, aquele rapaz sem nome, pára, olha e cruza a estrada, convicto de estar em perfeita segurança. Suspeito que estaria a pensar no filho prestes a sair da escola. Ou talvez ainda nem sequer tivesse filhos. Quem sabe, uma namorada talvez? Devia estar com fome, ansiando por uma refeição quente, quando a temperatura cá fora já vai fria. Caminha tranquilo, vestido de negro. Parece que trabalha numa dessas empresas que instalam televisão por cabo, ouvi dizer. Pára, escuta e olha. Um carro pára também. Ele atravessa. Um outro carro, em sentido contrário, não o vê. O som parece o de um pontapé, de alguém muito irritado, num pedaço de latão. Um vulto negro levanta voo e aterra violentamente à minha frente. Corpo inerte, rosto mergulhado em sangue, uma multidão que se avoluma como formigas. O homem do talho, de avental branco e facalhão em riste, detém-se no meio da estrada para se dar conta da ocorrência (amanhã terá tema de conversa todo o dia). Mais pessoas. Uma pequena multidão rodeia agora o homem que mal se consegue mexer. Por fim, lá consegue erguer do alcatrão o rosto hemorrágico. Mais um esforço. Consegue pôr-se de pé. Afinal, parece que não foi assim tão grave. Valeu o susto, um valente susto, a um condutor que num final de tarde, seguia tranquilo e sorridente ao volante do seu automóvel, cantarolando a música que passava na rádio.

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