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Domingo de Sol

- Está um dia tão bonito, aonde é que queres ir? A língua entorpece-me de raiva sempre que me obrigam a responder a esta pergunta. Só me ocorre Paris, Nova Iorque, Rio de Janeiro, ou muitos outros sítios bem longe daqui, onde sei que não é possível ir de imediato. - Sei lá, decide tu. E é o suficiente para que subitamente surjam trovões num céu imaculadamente limpo. Chave no carro, primeira metida, vrrrrmmmm, aqui vamos nós. - Esquerda ou direita? Silêncio. Olhares suspensos na brisa que atravessa o tablier. - Vira para qualquer lado ao calha e vai andando, logo se vê. Palavrões mudos retidos na boca. Mais silêncio. Fecham-se os olhos debaixo dos óculos de Sol e respira-se fundo. O carro ganha velocidade de Domingo, pouco mais que dois cavalos. Num arrastar suave, espreitam-se as vistas que passam pela janela em câmara lenta. Sempre as mesmas ruas, sempre as mesmas casas. As pessoas mudam, mas ainda assim parecem todas iguais. Exibem trajes domingueiros, uma camisola nova comprada em saldo. Os meninos arejam as bicicletas e as meninas dão uso aos sapatinhos de verniz. Rostos pobres de sorrisos gordos nunca pareceram tão felizes refastelados esplanada sim, esplanada sim. Bebem a bica, pedem um copo de água e levam duas horas a fazer a digestão, a tricotar a vida alheia e a fumar cigarros. Está um lindo dia e não há nada de mais interessante para fazer. Vamos apenas admirar o Sol. Olhamos para ele, erguemos as mãos atrás da nuca e sorrimos todos contentes. A vida é bela. O carro continua às voltas e o meu corpo permanece inerte, como morto. Estou longe, muito longe. O pensamento voa. Entretanto já embarcou noutra viagem. Que bom podermos sonhar. Sentir uma fina película despegar-se do corpo e vê-la seguir o seu caminho rumo ao ponto idealizado. Desço à terra. O carro pára. Bebo um café e só me apetece regressar a casa. Ligo a TV. Um anúncio. - A felicidade vem de dentro (de casa). Sento-me tranquila a ler um livro. No sofá, admiro os últimos raios de Sol que atravessam a janela da sala. Sorriso silencioso assentido com a cabeça. Concordo inteiramente com a frase. E não é que me sinto tão bem aqui num dia cheio Sol. Tão bem como se lá fora não se pudesse andar por tamanho dilúvio.

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)