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Vaga de frio

Este vento gélido parece arrastar destroços de leste. É Fevereiro de um ano em que ninguém augura nada de bom. Por cá, por toda a Europa, Estados Unidos e um pouco por todo o lado, é a crise. Anda na boca do mundo e afecta mesmo quem não entende os porquês. Lá para o fim de 2012, Dezembro, há quem diga que acaba o Mundo. Para ser honesta, dou pouco crédito ao calendário Maia. Impressionam-me mais as evidências que se me atravessam dia-a-dia no caminho. No outro dia, ao sair do carro, ao virar da esquina, sinto aproximar-se um vulto masculino. Coxeia na minha direcção. Sou subitamente invadida pelo receio. Temo a violência. Tenho medo que me queira fazer mal. Afinal, ouve-se de tudo por aí. Mais perto, vejo tratar-se de um homem de meia-idade. Cinquenta e tal, quarenta e muitos, não consigo precisar quantos anos tem. O retrato visual automaticamente processado pelo meu cérebro diz-me que aquele homem parece carregar o peso de muitos mais anos do que os que na realidade tem. Coxeia. Move-se lentamente. Arrasta o corpo suportado por uma bengala. - Sinhóra, sinhóra! Exclama na minha direcção, antes que me vá embora sem lhe prestar atenção. Percebo que não é português, quando me começa a tentar explicar o que quer. Num cocktail verbal que mistura palavras arranhadas em várias línguas, diz-me que é russo e que precisa de vinte cêntimos para conseguir comprar uma lata de feijão. O olhar azul deste homem é mais frio do que o vento polar que, tal como ele, também vem de leste. Que vento o terá trazido um dia para tão longe de casa. Imagino que tenha trabalhado como operário da construção civil. Tem as mãos pesadas, gastas e grossas de quem já carregou baldes de cimento. O rosto, demasiado enrugado e queimado pelo Sol. Tem um boné, um casaco que imita cabedal e umas calças de ganga cuja sujidade traz denúncias de abandono. Imagino – é, uma vez mais, apenas a minha imaginação a funcionar – tratar-se de um indigente. Talvez tenha ficado sem trabalho, sem dinheiro, sem casa e sem qualquer tipo de possibilidade de regressar ao país de origem. Questiono-me o que anda este país a fazer com as pessoas. Com as que cá nasceram e com todas as outras que por qualquer razão escolheram Portugal para viver. Agora que já não precisamos de vocês, que morram por aí em qualquer canto, que haverá quem recolha os corpos, nos intervalos da recolha do lixo. Isto é tudo imaginação, talvez esteja longe da verdade. Quem sabe, desvarios do meu cérebro louco que julga ver mais além do que os olhos conseguem alcançar. Tenho pena do homem. Sei que é um sentimento horrível de se ter. Mas tenho. Sem querer ouvir mais explicações, que ele continua a tentar dar-me num linguajar atribulado, abro a carteira e coloco-lhe uma moeda na mão. Olho-o nos olhos e o azul é agora mais intenso, mais brilhante. O homem desfaz-se em gestos de agradecimento e os olhos cintilam. E eu não fico mais pobre. Fico inesperadamente feliz por aquele homem se ter cruzado no meu caminho. A alegria que manifesta ao receber aquela mísera moeda, faz-me crer que é a primeira que recebe neste dia, após tantas e tantas tentativas falhadas. Afasto-me com um sorriso e ergo o polegar querendo agradecer os votos que continua a querer manifestar-me. Se falasse bem português, estaria a desejar-me muita saúde e sorte, para mim e para toda a família. É claro que me ocorre que vai gastar o dinheiro em bebida. Mas não me importo nem um bocadinho. Se fosse a ele, com o frio que está, talvez não tendo casa para onde voltar, suspeito que também eu procuraria beber para esquecer. Neste fim de tarde, a rua parece o corredor dos iogurtes vestido de asfalto. E a mim, no regresso a casa, só me apetece uma sopa bem quente.

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