Avançar para o conteúdo principal

Sono perpétuo

Ontem à noite, enquanto as minhas pálpebras repousavam temporariamente sobre os olhos, no outro lado do mundo, uma outra mulher adormecia. Hoje, ao despertar para um magnífico domingo de sol, sou surpreendida por uma notícia triste: ela não acordou. O corpo da cantora, tal como a voz, mergulhou para sempre num sono profundo. A tristeza que sinto inunda-me de recordações. Lembro-me perfeitamente de um dia ter desejado ser como ela. Tinha uns doze, treze anos, quando fui ao cinema ver o primeiro filme para crescidos. A euforia era grande. Um momento inesquecível. Sem pais, sem ninguém a controlar, lá fomos, avenida abaixo, um grupo de amigos, alguns namoricos pelo meio. Parecíamos gente adulta na sessão das nove e meia. Na consciência, apenas o peso da ordem para regressar a casa antes da meia-noite. O coração batia forte, acelerado. Emoção, sorrisos, sussurros e risinhos trocados a meia-luz, ilusões misturadas com desejo de um primeiro beijo no escurinho do cinema. Pelo meio, de colo em colo, um imenso balde de pipocas quentes ainda a crepitar caramelo e muitas mãos cruzadas a esgravatá-las. Baixam as luzes. Era suposto haver silêncio, mas só se ouvem dentes furiosos a desfazer esferovite adocicada. Começa o filme. Conta a história de uma cantora que se apaixona pelo guarda-costas: “The bodyguard”. Um sucesso de bilheteira. Uma banda sonora memorável. Duas horas de Kevin Costner e Whitney Houston apaixonados. O filme acaba, sem final feliz. Um prenúncio da vida real. Lembro-me de a ver no grande ecrã e desejar ser como ela. Tez escura, pele de veludo, lábios carnudos, dentes perfeitos, sorriso fotográfico. Uma diva. Seguiram-se noites e noites de uma adolescência comprida. Muitas delas ao ritmo da aparelhagem sempre ligada na sala, volume no mínimo, para não chatear quem dormia. Em casa da minha melhor amiga, assim que a porta se fechava, nós abríamos o coração, uma à outra, nos intervalos das sessões de estudo. E lá estava ela, a sair do rádio. A cantora da moda ria e chorava connosco. Escutava os nossos segredos e respondia-nos com letras de canções que só falavam de amor. A nossa amizade perdeu-se no tempo. As paixões, encontros e desencontros, esfumaram-se por aí. E a estrela, a cantora, a musa, a diva da POP, desapareceu hoje deste mundo, na véspera dos Grammys, aos quarenta e oito anos. Enquanto eu adormecia por umas horas, ela adormecia para sempre. E para me sentir mais leve, dou comigo a pensar: experimentamos um pouco de morte todas as noites e sabe-nos tão bem! Para quê tanta pena? Porquê tanto medo? Passaram vinte anos e aquele cinema é hoje uma loja chinesa. Quanto a ti Whitney, uma última homenagem: “I will always love you”.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...

RECONFINAMENTO - III

Os dias passam velozes mas o tempo parece não avançar. As soluções demoram, ninguém trava a morte, o cárcere dos dias é uma asfixia doméstica sem direito a balões de oxigénio. Resta-nos fechar os olhos e apelar à imaginação: estar aonde não estamos, ir aonde não vamos. O pensamento pode ser o pior ou o nosso melhor aliado. As saudades têm nome e rosto e os beijos e abraços são promessas dolorosas por cumprir. Queremos todos o mesmo. O que mais desejamos é que este tempo passe e o mundo avance para outra realidade. Uma vida nova, sem distâncias de pele, na qual nos possamos voltar a cheirar e tocar ao sabor do desejo.

Quando a avó me levava ao parque

Quando a minha avó me levava ao parque, eu tinha cinco anos e ainda sabia ser feliz. A avó levava sempre a minha mão bem apertada pelo medo de não me deixar fugir. Esses dias eram sempre finais de tarde de verão, daqueles que o Sol gosta de prolongar até que resolve esconder-se. Depois de jantar, lá íamos nós, rua acima, pela fresquinha – como ela dizia – agradada com a brisa que antecede o anoitecer. Lá em casa, jantávamos cedo, às seis da tarde já a comida estava na mesa. Era assim por causa do avô. Ele chegava das obras com a roupa e as botas pesadas de cimento e tomava sempre banho antes de ocupar o seu lugar cativo à mesa. Depois, com as mãos espessas e ásperas de tanto acartar baldes de massa, cortava uma fatia de pão. Vida dura a do avô. As obras começavam sempre cedo, sobretudo no verão, para fugir à braseira estival. Vida dura a da avó. Uma vida feita de espera e de cuidar dos outros. Mas nem um lamento. Daquela boca só saíam jóias e rebuçados. Daquelas mãos, só carinho. Da...