"Blindness", Fernando Meirelles, 2008 |
Agora que o frio convida ao aconchego, volto a pôr
a cultura cinematográfica em dia. Na data em que celebraria noventa anos de
idade, em jeito de homenagem, assisti pela primeira vez em DVD ao filme que fez
Saramago chorar na estreia. Adaptado ao cinema pelo aclamado realizador
brasileiro Fernando Meirelles, “Ensaio
sobre a cegueira”, baseado no romance homónimo do Nobel português, é um
filme chocante que decididamente nos faz abrir os olhos. Não o terá feito com essa intenção, mas ao ler as
primeiras linhas do livro, temos a sensação que José Saramago estava já a
desenhar o esboço de um filme. Toda a descrição é muito pictórica, um apelo à
visualização, quando ironicamente o tema central é a cegueira. E se, de
repente, a humanidade fosse inexplicavelmente contaminada por um estado de
cegueira? O autor parte desta premissa para ficcionar o que aconteceria. E a
resposta a que chega é o caos. Na sua mente de génio, Saramago imagina os
contaminados a serem colocados de quarentena num antigo hospital psiquiátrico,
sem as mínimas condições de higiene, privados de qualquer conforto ou contacto
com o exterior, alimentados a ração de guerra, que vai escasseando ao passo que
os contaminados aumentam. Os cegos mal se apercebem onde foram parar, mas há
uma mulher, a única que continua a ver, que tem vislumbres permanentes do apocalipse.
Quando o ser humano se vê privado das necessidades básicas, deixa de ser
racional e o instinto de sobrevivência traz ao de cima o que de mais medonho e animalesco
pode existir em nós. Quando o nosso único objectivo é sobreviver, somos capazes
de tudo. É essa a mensagem do autor, levada ao extremo pela lente do
realizador. No limite, sem escrúpulos, nem nada a perder, pessoas exploram
pessoas, cães comem as carcaças humanas que vão sobrando nas ruas. E a
felicidade pode ser reencontrada, após a fuga do cativeiro, num simples banho
de chuva tomado em liberdade. “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”,
aconselha-nos Saramago na citação de abertura desta história que só a sua mente
brilhante poderia ter imaginado.
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