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A vida é uma menina que corre

A vida corre. Como corria aquela menina de olhos cor de esperança que adentrava os campos e trepava as árvores. Eram anos duros mas leves, rigorosos mas despreocupados. A menina tinha uma idade na qual não cabiam problemas e o ar puro entrava-lhe a plenos pulmões. Dormia o sono angelical dos pássaros e raiava como um sol ao alvorecer. A escola era uma lonjura solitária calcorreada na alegria inocente de quem nada teme. O mal não existe para quem o desconhece. E aquela menina era uma bondade só. Do campo para a cidade, de Portugal para o estrangeiro, o bom dia virou bonjour e passou a ir à l'école. Cette petite fille cresceu emigrante e regressava princesa aos bailes de Verão. Foi aí que um dia o príncipe a convidou para dançar. Era um jovem rebelde e destemido com aspirações políticas e um encanto singular. Era alto, esguio, calças à boca de sino e cabeleira a condizer com os 70's. Encantada, ela rendeu-se e o coração não parou de crescer desde esse dia. Bateu, bateu, bateu, até que lhe saltou do peito duas vezes e passou a bater do lado de fora. Vestido de noiva, duas crianças ao colo, trabalho, trabalho e a vida a correr sem piedade. Hoje é uma senhora. Já não corre porque os livros ensinam que devemos andar mais devagar. Chegou à idade da sabedoria, trepando dores e driblando adversidades. Mais firme e mais forte do que nunca, ainda é filha, sendo mãe e avó. De todos cuida, a todos vigia, a todos ampara e protege. O amor move-lhe a vida e afasta-a da idade. Hoje faz anos apenas porque a vida corre. Mas o espírito ascende gradualmente em alegria, na glória da continuidade do dom que certo dia, neste dia, recebeu.

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)