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A GUERRA EM DIRETO

Estamos aqui como se estivéssemos lá. As imagens e os sons do medo chegam-nos em tempo real, fazendo tocar as nossas sirenes interiores. É alarmante imaginar a nossa vida a ruir assim, abrindo mão de tudo o que damos como certo, em nome da sobrevivência. Deixar de ter direito ao conforto da cama e ao sossego do sono. Deixar para trás a casa à qual não sabemos ser possível regressar. Despedirmo-nos de filhos sem a certeza do reencontro. Caminhar pela destruição dos dias na certeza de que tudo é incerteza. Aprender a aceitar a impossibilidade imediata de suprir a fome, a sede, o sono, a higiene, a necessidade de comunicar com quem amamos é uma regressão civilizacional. Sob a ameaça da privação, facilmente nos podemos transformar em animais selvagens. Quando começarem a escassear os recursos, irá imperar a lei do mais forte. No terceiro dia de uma guerra às portas da Europa, termino o meu banho quente com o desconforto desta reflexão interior. O pequeno almoço que se segue parece-me um tremendo privilégio, na consciência plena de saber que amanhã não está garantido. Só a possibilidade da escassez nos mostra a abundância. Só a realidade da guerra nos revela o verdadeiro valor da paz.


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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)