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A GUERRA EM DIRETO

Estamos aqui como se estivéssemos lá. As imagens e os sons do medo chegam-nos em tempo real, fazendo tocar as nossas sirenes interiores. É alarmante imaginar a nossa vida a ruir assim, abrindo mão de tudo o que damos como certo, em nome da sobrevivência. Deixar de ter direito ao conforto da cama e ao sossego do sono. Deixar para trás a casa à qual não sabemos ser possível regressar. Despedirmo-nos de filhos sem a certeza do reencontro. Caminhar pela destruição dos dias na certeza de que tudo é incerteza. Aprender a aceitar a impossibilidade imediata de suprir a fome, a sede, o sono, a higiene, a necessidade de comunicar com quem amamos é uma regressão civilizacional. Sob a ameaça da privação, facilmente nos podemos transformar em animais selvagens. Quando começarem a escassear os recursos, irá imperar a lei do mais forte. No terceiro dia de uma guerra às portas da Europa, termino o meu banho quente com o desconforto desta reflexão interior. O pequeno almoço que se segue parece-me um tremendo privilégio, na consciência plena de saber que amanhã não está garantido. Só a possibilidade da escassez nos mostra a abundância. Só a realidade da guerra nos revela o verdadeiro valor da paz.


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