Estamos aqui como se estivéssemos lá. As imagens e os sons do medo chegam-nos em tempo real, fazendo tocar as nossas sirenes interiores. É alarmante imaginar a nossa vida a ruir assim, abrindo mão de tudo o que damos como certo, em nome da sobrevivência. Deixar de ter direito ao conforto da cama e ao sossego do sono. Deixar para trás a casa à qual não sabemos ser possível regressar. Despedirmo-nos de filhos sem a certeza do reencontro. Caminhar pela destruição dos dias na certeza de que tudo é incerteza. Aprender a aceitar a impossibilidade imediata de suprir a fome, a sede, o sono, a higiene, a necessidade de comunicar com quem amamos é uma regressão civilizacional. Sob a ameaça da privação, facilmente nos podemos transformar em animais selvagens. Quando começarem a escassear os recursos, irá imperar a lei do mais forte. No terceiro dia de uma guerra às portas da Europa, termino o meu banho quente com o desconforto desta reflexão interior. O pequeno almoço que se segue parece-me um tremendo privilégio, na consciência plena de saber que amanhã não está garantido. Só a possibilidade da escassez nos mostra a abundância. Só a realidade da guerra nos revela o verdadeiro valor da paz.
Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...
Comentários
Enviar um comentário
Se gostou deste artigo, ou tem uma palavra a acrescentar, agradeço imenso que deixe o seu comentário.