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Conto "Casa de Bonecas" - página 3

- Olá princezinha! Então chamas-te Maria. E quantos anos tens, minha querida? – Perguntou Dona Carlota, tentando meter conversa da forma mais natural possível.
- Tenho sete, quase oito. Faço anos no mês que vem – tratou de esclarecer a menina com prontidão.
- Uhmmm! Então já sabes ler e escrever, certo? - Continuou a avó.
- Claro! E até sou uma das melhores alunas da minha sala – disse Maria com visível orgulho.
Deixando-se levar pela magia daquele inesperado encontro com uma criança de tenra idade, a avó decidiu não fazer perguntas difíceis ao neto em frente da menina. Guardou-as para mais tarde, quando estivessem os dois a sós. E prosseguiu a conversa apressando-se a fazer as honras à casa. Era sempre com grande emoção que revelava os cantos e recantos da sua loja encantada, partilhando histórias que por ali se passaram ao longo de mais de cinquenta anos. Energicamente, apesar dos seus oitenta e muitos anos, foi fazendo disparar interruptores à sua passagem.
Maria caminhava, pé ante pé, boquiaberta e deslumbrada com o que se ia revelando à sua frente. Para ela, que pouco ou nada tinha, aquela loja era um mundo inteiro. Um mundo de fantasia, cor e alegria. Um mundo oposto ao que a esperava diariamente à chegada a casa. Por instantes, Maria desejou esquecer-se de vez que morava numa barraca, onde dividia uma espécie de quarto com mais quatro irmãos – três mais velhos e uma irmã mais nova de apenas dois anos. Na ingenuidade dos seus sete anos, foi invadida por um inconsciente desejo de ficar naquela casa para sempre.
Nas estantes, vitrinas e cadeirões antigos harmoniosamente espalhados pela enorme sala dormiam os mais variados brinquedos. Bonecas de porcelana, bonecas de pano com cabelos de lã, peões e carrinhos de madeira, bolas de trapos eram apenas o início de uma longa lista que levaria meses a escrever. Mais perto do sonho do que a realidade, Maria era incapaz de pronunciar uma palavra que fosse. Estava numa espécie de transe provocado por um auge da sua curta existência. Fixou o olhar numa peça que estava exposta na montra como se a quisesse hipnotizar. E sem pedir licença aproximou-se dela decidida a tocá-la. Mas antes de o fazer, hesitou e parou.
- Não tenhas medo, querida – disse a avó Carlota – podes pegar-lhe, só tens de o fazer com as duas mãos e com muito cuidado para que não se parta. Sabes, essa peça é muito especial para mim – continuou - essa caixinha de música era da minha avó. Quando era pequenina, devia de ter mais ou menos a tua idade, também eu adorava dar-lhe corda e ficar a ver a bailarina dançar ao som desta música – concluiu, pegando ela própria na caixinha com o objectivo de lhe dar corda pela enésima vez.

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