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Conto "Casa de Bonecas" - página 5

A hora que demorou aquele lanche tardio serviu para Pedro colocar a avó ao corrente do que se passava com Maria. Dona Carlota ficou muito sensibilizada ao saber que a menina era muito pobre e que vivia em condições miseráveis apenas com a mãe e mais quatro irmãos. Apercebeu-se de que era uma criança carente, talvez pelo facto de a mãe estar mais preocupada em arranjar dinheiro para sustentar os filhos do que em confortá-los com gestos de carinho. A falta de dinheiro bloqueia-nos sempre a vontade de demonstrar amor, pensou só para si a velhota.
Dona Carlota havia reparado também que a menina, apesar de ser muito bonita, se apresentava com o cabelo muito oleoso e as roupas demasiado roçadas. Por isso, antes de resolver a questão de a devolver à mãe, decidiu que ela sairia de sua casa com outro aspecto. Encheu a sua velha banheira com água quente e deixou a menina chapinhar nela durante uns minutos, enquanto lhe esfregava energicamente a longa melena encaracolada e cada dobra do corpo, desde as axilas até aos entremeios dos dedos dos pés. Depois secou-a muito bem e lembrou-se de procurar num baú muito antigo algumas roupas dos netos quando eram pequenos. Descobriu uma camisola de lã grossa com motivos de renas e uma jardineira castanha de bombazina que assentaram a Maria como uma luva. Agora está perfeita, pensou, fixando a criança com o olhar contemplativo que habitualmente dedicava a cada uma das suas bonecas de porcelana.
Era já noite cerrada. As nove badaladas ecoadas pelo antigo relógio de pêndulo confirmavam isso mesmo.
- Está na hora de voltares para casa, Maria – disse Dona Carlota – a tua mãe já deve estar muito apoquentada – acrescentou, revendo-se com nitidez na pele de uma mãe que desespera pela chegada de um filho ausente.
- Mas eu não sei o caminho! – Retorquiu a menina, encolhendo os ombros e franzindo ao de leve o sobrolho. - Por isso andava perdida quando o Pedro me encontrou – prosseguiu, gesticulando com as mãos enquanto se fazia explicar.
- Não há problema - aligeirou Pedro - vamos jogar um jogo para ver se eu descubro onde é a tua rua, propôs. Vais-me dando pistas e eu vou compondo o puzzle aqui na minha cabeça. Olha, eu começo a frase “Na minha rua há…” e tu acabas, pode ser?
A ideia pareceu animar Maria que rapidamente se lançou na brincadeira:
- Siiim! Na minha rua há… um café!
- Boa! E como se chama esse café? – Questionou Pedro.
- Ahhhhh… - hesitou Maria – O nome não me lembro, mas sei que é da Dona Rosa, disse a menina, certa de que seria uma dica importante.
Pedro esboçou um ar de completo desânimo ao aperceber-se que não ia ser assim tão fácil chegar à chave do problema. Ainda assim prosseguiu:
- Outra tentativa… “Na minha rua há…" (...)

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