Avançar para o conteúdo principal

Conto "Casa de Bonecas" - página 6

- Outra tentativa… “Na minha rua há….”
- Há lá perto muitos prédios coloridos, assim aos quadradinhos cor-de-rosa, azuis, verdes e amarelos - disse, articulando as palavras tão depressa com a boca como com os gestos das mãos.
Com esta deixa fez-se luz na cabeça de Pedro. A casa da menina ficaria certamente próximo de um bairro social que havia ali perto. Decidido a confirmar a sua pista, Pedro convidou Maria a acompanhá-lo até à rua. Iria acompanhá-la a pé, até se certificar que a deixaria devidamente entregue à família. Antes de sair, Maria quis dar um beijo a Dona Carlota e dizer-lhe obrigada. Sentia que aquela velhota a tinha vindo salvar da sua pobre e triste existência. De facto, não estava muito longe da realidade. Só ainda não o sabia.
- Vamos combinar uma coisa - sugeriu Dona Carlota - a partir de amanhã eu vou buscar-te à porta da escola e depois vens para aqui comigo um bocadinho, tomas um lanche e fazes os trabalhos, antes de voltares para cada, pode ser?
- A sério? Yupi! – Explodiu Maria, num gritinho tipicamente infantil, completamente eufórica com a proposta avançada pela avó de Pedro.
No dia seguinte, pontualmente às três da tarde, lá estava Dona Carlota junto ao portão principal. Maria desceu a escadaria frontal num fôlego só. Estava eufórica por rever a sua nova (velha) amiga. E muito feliz por ela ter cumprido o que prometera na noite anterior.
- Maria! – Chamou Dona Carlota num grito, ao mesmo tempo que acenava efusivamente com o braço direito.
- Dona Carlota! – Respondeu a menina, noutro berro não menos sonoro e expressivo, correndo de braços abertos na sua direcção, deixando antever um caloroso abraço.
Já de mãos dadas, as duas caminharam tranquilamente até à casa cor-de-rosa, trocando confidências sobre o decorrer daquele dia, e claro, sobre o desfecho da noite anterior.
À chegada a casa, a mãe de Maria reagira com rispidez. Chegou a ser até um pouco desagradável com Pedro, antes de se acalmar e ouvir a versão integral do sucedido. Pedro ficou impressionado com a pobreza daquela casa e daquela gente. Chegou a questionar-se em silêncio: como pode ser possível alguém sobreviver num sítio como este? Era de facto perturbadora a forma como aquela pobreza falava directamente aos olhos atentos de Pedro. As paredes (se assim se podiam chamar) escorriam água e exibiam bolor como se de obras de arte se tratassem. O cheiro a bafio era nauseabundo, mesmo sentido apenas suavemente através da porta entreaberta. Um pequeno grupo de crianças de olhar vazio, circundavam a mãe como crias que anseiam desesperadamente pela próxima mamada. (...)

Comentários

Mensagens populares deste blogue

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...

RECONFINAMENTO - III

Os dias passam velozes mas o tempo parece não avançar. As soluções demoram, ninguém trava a morte, o cárcere dos dias é uma asfixia doméstica sem direito a balões de oxigénio. Resta-nos fechar os olhos e apelar à imaginação: estar aonde não estamos, ir aonde não vamos. O pensamento pode ser o pior ou o nosso melhor aliado. As saudades têm nome e rosto e os beijos e abraços são promessas dolorosas por cumprir. Queremos todos o mesmo. O que mais desejamos é que este tempo passe e o mundo avance para outra realidade. Uma vida nova, sem distâncias de pele, na qual nos possamos voltar a cheirar e tocar ao sabor do desejo.

Quando a avó me levava ao parque

Quando a minha avó me levava ao parque, eu tinha cinco anos e ainda sabia ser feliz. A avó levava sempre a minha mão bem apertada pelo medo de não me deixar fugir. Esses dias eram sempre finais de tarde de verão, daqueles que o Sol gosta de prolongar até que resolve esconder-se. Depois de jantar, lá íamos nós, rua acima, pela fresquinha – como ela dizia – agradada com a brisa que antecede o anoitecer. Lá em casa, jantávamos cedo, às seis da tarde já a comida estava na mesa. Era assim por causa do avô. Ele chegava das obras com a roupa e as botas pesadas de cimento e tomava sempre banho antes de ocupar o seu lugar cativo à mesa. Depois, com as mãos espessas e ásperas de tanto acartar baldes de massa, cortava uma fatia de pão. Vida dura a do avô. As obras começavam sempre cedo, sobretudo no verão, para fugir à braseira estival. Vida dura a da avó. Uma vida feita de espera e de cuidar dos outros. Mas nem um lamento. Daquela boca só saíam jóias e rebuçados. Daquelas mãos, só carinho. Da...