Avançar para o conteúdo principal

Conto "Casa de Bonecas" - página 7

Pedro sabia que não poderia fazer muito para resolver os imensos problemas em que aquela família estava mergulhada. Contudo, sentia que ao fazer algo por Maria, já estaria a dar um contributo importante à humanidade. Às vezes temos que nos conformar de que não podemos mudar o mundo, mas em contrapartida temos sempre a hipótese de mudar, por um pouco que seja, a vida de alguém, costumava opinar muitas vezes o jovem rapaz no decorrer das longas tertúlias com os amigos.
De volta à “Casa de bonecas” (nome com o qual Dona Carlota havia baptizado a sua loja na década de sessenta), Maria reencontrou na vida real o conforto que muitas vezes vivenciava nos seus sonhos. Tinha até já tomado uma decisão, muito adulta por sinal para uma criança de apenas sete anos:
- Quando for grande, vou ser arquitecta! – Afirmou, com uma convicção fora do vulgar para uma menina tão pequena. – E vou desenhar muitas casas. Uma delas só para mim, muito grande, onde eu possa ter um quarto só para mim, uma casa de banho só para mim e uma piscina só para mim – rematou, denunciando um certo egoísmo, um sentimento que nasce naturalmente nas pessoas que se vêem privadas daquilo que consideram merecer por direito, pelo simples facto de terem nascido.
- Que boa ideia, Maria! – Apoiou Dona Carlota, acabada de decidir que iria contemplar aquela doce criança no seu testamento. Estava certa de que os filhos e os netos não se iriam opor nem a condenariam por isso. Todos eles haviam sido educados com base no princípio do amor ao próximo.
Dona Carlota foi fazendo as coisas aos poucos, como se estivesse a preparar tudo para um final que se avizinhava, cada vez mais próximo, a cada dia que chegava ao fim. Abriu pessoalmente uma conta bancária a favor de Maria onde depositou o dinheiro suficiente para um dia acautelar os seus estudos. Estabeleceu que a menina só poderia gerir o seu próprio património depois de completar dezoito anos. Até lá, Pedro ficaria como seu fiel tutor.

Naquela tarde quente de Verão, Maria estranhou o facto de, pela primeira vez em mais de seis meses, não ver Dona Carlota junto ao portão da escola.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)