O que estaria a pensar aquele rapaz, de ar sereno, que atravessava a passadeira no final de mais um dia de trabalho? A noite havia chegado mais cedo. Perto das seis da tarde, já era escuro como o breu. E ele, aquele rapaz sem nome, pára, olha e cruza a estrada, convicto de estar em perfeita segurança. Suspeito que estaria a pensar no filho prestes a sair da escola. Ou talvez ainda nem sequer tivesse filhos. Quem sabe, uma namorada talvez? Devia estar com fome, ansiando por uma refeição quente, quando a temperatura cá fora já vai fria. Caminha tranquilo, vestido de negro. Parece que trabalha numa dessas empresas que instalam televisão por cabo, ouvi dizer. Pára, escuta e olha. Um carro pára também. Ele atravessa. Um outro carro, em sentido contrário, não o vê. O som parece o de um pontapé, de alguém muito irritado, num pedaço de latão. Um vulto negro levanta voo e aterra violentamente à minha frente. Corpo inerte, rosto mergulhado em sangue, uma multidão que se avoluma como formigas. O homem do talho, de avental branco e facalhão em riste, detém-se no meio da estrada para se dar conta da ocorrência (amanhã terá tema de conversa todo o dia). Mais pessoas. Uma pequena multidão rodeia agora o homem que mal se consegue mexer. Por fim, lá consegue erguer do alcatrão o rosto hemorrágico. Mais um esforço. Consegue pôr-se de pé. Afinal, parece que não foi assim tão grave. Valeu o susto, um valente susto, a um condutor que num final de tarde, seguia tranquilo e sorridente ao volante do seu automóvel, cantarolando a música que passava na rádio.
Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...
Que susto!
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