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Noite feliz

O espírito acende-se na árvore e aos poucos em cada um de nós. Não há quem lhe seja imune. Gostamos do Natal porque é uma noite sem medo, de ruas e casas muito iluminadas. De estradas desertas e casas lotadas. Uma noite onde até as solidões se confortam de azeite morno derramado no bacalhau. Porque nesta noite até os sem tecto são chamados a sentar-se à mesa diante de um prato quente. Há mais mantas para distribuir e tendas abertas ao convívio dos que se habituaram a chamar cama às pedras da calçada. É a noite mais tranquila de todas as noites porque o mundo, por umas horas, se aquieta e respira. Até os escravos da idade moderna tem ordem para partir em liberdade. Facturam até ao último instante os esquecimentos de alguém e suspiram sonhos quando chega a tão esperada hora de jantar. Os que têm a sorte de sentar-se à mesa, gostam de a ter farta das suas tradições. É a noite do vale tudo, comer e beber e repousar dos sacrifícios passados. Olhar com vagar e descobrir novas rugas nos rostos de quem há muito não se via. Sentir que cada lugar vazio ocupa todo o espaço do pensamento. Reencontrar em cada nova vida que corre pela casa a alegria que faz adormecer a saudade. Mesmo quando não há presentes, é a noite em que se desembrulham todas as lembranças: quando a avó cozinhava, quando o pai ainda estava aqui, quando era eu a criança dona de todas as euforias e risos. Quando o Natal era uma festa, eu ainda acreditava que podia tudo e que toda a gente durava para sempre. Dizia Natal com o espanto alegre de quem vê uma chuva de estrelas enquanto pede desejos. Este ano portei-me bem, mereço um presente. E mesmo quando me portava mal os presentes apareciam. A vida era a magia de ver acontecer o que se deseja. Como no circo, varinha mágica no chapéu e coelho a sair da cartola. Ainda que o Natal já não seja o que foi, será sempre uma linha imaginária que marca a mudança dos medos. Uma troca de esperanças assinalada com a troca de presentes. É tempo de reciclar objectos e sentimentos. Trocar o velho pelo novo, eliminar o que já não se quer, abrir espaço para que entre o melhor.

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)