O espírito acende-se na árvore e aos poucos em cada um de nós. Não há quem lhe seja imune. Gostamos do Natal porque é uma noite sem medo, de ruas e casas muito iluminadas. De estradas desertas e casas lotadas. Uma noite onde até as solidões se confortam de azeite morno derramado no bacalhau. Porque nesta noite até os sem tecto são chamados a sentar-se à mesa diante de um prato quente. Há mais mantas para distribuir e tendas abertas ao convívio dos que se habituaram a chamar cama às pedras da calçada. É a noite mais tranquila de todas as noites porque o mundo, por umas horas, se aquieta e respira. Até os escravos da idade moderna tem ordem para partir em liberdade. Facturam até ao último instante os esquecimentos de alguém e suspiram sonhos quando chega a tão esperada hora de jantar. Os que têm a sorte de sentar-se à mesa, gostam de a ter farta das suas tradições. É a noite do vale tudo, comer e beber e repousar dos sacrifícios passados. Olhar com vagar e descobrir novas rugas nos rostos de quem há muito não se via. Sentir que cada lugar vazio ocupa todo o espaço do pensamento. Reencontrar em cada nova vida que corre pela casa a alegria que faz adormecer a saudade. Mesmo quando não há presentes, é a noite em que se desembrulham todas as lembranças: quando a avó cozinhava, quando o pai ainda estava aqui, quando era eu a criança dona de todas as euforias e risos. Quando o Natal era uma festa, eu ainda acreditava que podia tudo e que toda a gente durava para sempre. Dizia Natal com o espanto alegre de quem vê uma chuva de estrelas enquanto pede desejos. Este ano portei-me bem, mereço um presente. E mesmo quando me portava mal os presentes apareciam. A vida era a magia de ver acontecer o que se deseja. Como no circo, varinha mágica no chapéu e coelho a sair da cartola. Ainda que o Natal já não seja o que foi, será sempre uma linha imaginária que marca a mudança dos medos. Uma troca de esperanças assinalada com a troca de presentes. É tempo de reciclar objectos e sentimentos. Trocar o velho pelo novo, eliminar o que já não se quer, abrir espaço para que entre o melhor.
Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...

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