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A desumanização

“A desumanização”, Valter Hugo Mãe, 2013
O que dizer de Valter Hugo Mãe, um escritor que chegou viu e venceu? Se há pessoas que nascem com o dom da palavra, ele foi um deles. Não tem, porém, uma escrita fácil nem consensual. Só um apreciador de belas artes gostará de lê-lo. A escrita de Hugo Mãe roça o surrealismo e causa por vezes estranheza, antes do verdadeiro prazer. Nunca o tinha lido enquanto romancista, confesso. Há muito que sigo as suas crónicas no Jornal de Letras e noutras publicações, apreciando-lhe o estilo: frontal e cristalino, por vezes de uma inocência infantil, sempre a prosar de olho na poética que cada entrelaçar de palavras pode encerrar. A leitura deste seu último romance - “A desumanização” – vem confirmar-me a ideia de que estamos diante de um grande escritor português, com um estilo muito vincado, onde uma obsessiva busca pela literalidade se sobrepõe sempre ao valor da história. Há momentos em que quase esquecemos o conteúdo narrado e nos deleitamos apenas a admirar a construção frásica e as analogias encontradas para nos expor diante uma imagem que contemplamos como um amante de arte. Este é um livro só para leitores maduros. Não recomendado aos que apenas lêem por mera distracção.  A busca do sentido da vida por uma gémea dos fiordes islandeses, que acaba de perder a irmã que lhe servia de espelho, é um mero pano de fundo para as mil e uma divagações do autor sobre os mais diversos temas com que se confronta toda a existência humana. 

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)