Avançar para o conteúdo principal

CRÓNICAS DA PANDEMIA - III

Mesmo em casa, os dias passam a correr, mas este tempo parece nunca mais ter fim. O horizonte é o dia de amanhã e ninguém consegue ver mais além. Acordar vivo e de boa saúde, no conforto do lar, já é tão bom que nem arriscamos sonhar mais alto. Proponho-me fazer demasiadas coisas e chego ao fim do dia com intermináveis listas de afazeres incompletas. Amanhã também é dia, logo faço. Como é que se desliga o botão da cabeça, para nos voltarmos a focar objetivamente em algo produtivo? Dos e-mails ganhei pavor, sobretudo quando começam a cair faturas como pedras. Receber menos (ou alguns até nada) e continuar a pagar, pagar, pagar... Quem é que aguenta? Quem é que resolve, se a culpa não é de ninguém? Há quem invente costurar máscaras ou outras utilidades mas, tirando o negócio da morte, da saúde e dos bens essenciais, nada é ganha pão por estes dias. Nem aos artistas lhes servem os dons. O palco da vida está vazio e o espetáculo foi cancelado. Até ordem a perder de vista, continuaremos todos a sobreviver em stand-by. Resta-me por o rímel e o batom, para ir despejar o lixo, com o entusiasmo sorridente de quem vai para a festa.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)