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CRÓNICAS DA PANDEMIA - III

Mesmo em casa, os dias passam a correr, mas este tempo parece nunca mais ter fim. O horizonte é o dia de amanhã e ninguém consegue ver mais além. Acordar vivo e de boa saúde, no conforto do lar, já é tão bom que nem arriscamos sonhar mais alto. Proponho-me fazer demasiadas coisas e chego ao fim do dia com intermináveis listas de afazeres incompletas. Amanhã também é dia, logo faço. Como é que se desliga o botão da cabeça, para nos voltarmos a focar objetivamente em algo produtivo? Dos e-mails ganhei pavor, sobretudo quando começam a cair faturas como pedras. Receber menos (ou alguns até nada) e continuar a pagar, pagar, pagar... Quem é que aguenta? Quem é que resolve, se a culpa não é de ninguém? Há quem invente costurar máscaras ou outras utilidades mas, tirando o negócio da morte, da saúde e dos bens essenciais, nada é ganha pão por estes dias. Nem aos artistas lhes servem os dons. O palco da vida está vazio e o espetáculo foi cancelado. Até ordem a perder de vista, continuaremos todos a sobreviver em stand-by. Resta-me por o rímel e o batom, para ir despejar o lixo, com o entusiasmo sorridente de quem vai para a festa.

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...