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CRÓNICAS DA PANDEMIA - I

Rostos semi-cobertos mascaram o medo, asfixiados numa vigilância desconfiada do outro. A fila para o supermercado ainda demora e meio passo à frente ou atrás garante a distância necessária. O segurança, também mascarado, pulveriza as mãos de quem acaba de alcançar a sua vez. Ao entrar a conta-gotas, os clientes parecem mais, mas são os mesmos de sempre, talvez menos até. Lá fora, também o pedinte é o de sempre, talvez agora com mais fome. Ninguém dá moedas porque não as tem. Agora só se usa cartão e isso desculpa a falta de vontade de partilhar seja o que for. Todos temem vir a precisar depois. Lá dentro, esquecem-se as distâncias e os corredores entopem. Andamos sempre a fugir uns dos outros, receosos de um toque ou de um espirro. Pegamos nas coisas com dedos de nojo, imaginando o tédio de as desinfectar uma por uma. E tentamos ser rápidos e concisos, tentando não esquecer nenhum ingrediente para a ementa semanal. Nas caixas, os operadores estão escudados de acrílico, quais polícias de choque. As barreiras anti-perdigotos protegem-os também de certas ofensas, que por vezes têm de suportar. A conta é sempre tão grande! Sete pequenos almoços, sete almoços e sete jantares pesam horrores na hora de pagar e de carregar os sacos. À saída, o segurança continua mascarado e sério e faz sinal ao próximo para entrar. Compras no carro e o pedinte em redor como uma mosca. Digo-lhe que dinheiro não tenho mas se quiser posso partilhar comida. Diz-me que sim, que quer comida. Receando o desperdício, não consigo dizer não. Pego numa banana, numa tangerina e num pão, meto dentro de um saco e entrego-lhe com amor. É tão pouco mas fará a diferença se tiver fome. Volto para casa mais tranquila porque abastecida, sempre na ânsia de lavar as mãos e me descalçar. Nunca o meu lar doce lar me pareceu um lugar tão limpo e seguro. Aqui, só aqui, volto a respirar o alívio da vida de antigamente, quando ainda todos nos podíamos abraçar e beijar livremente, a toda a hora.

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