Partida. Caminhas só no meio da multidão, isolada nos teus pensamentos. Esses anónimos não te dizem nada. Apenas guiam os teus passos como um traço contínuo, confirmando o trilho a seguir. Em jeito de distracção, decides prestar atenção aos sons que te rodeiam. Um exército de pés, passos ritmados, passos pesados, esmigalham calhaus derramados pelo tempo sobre a terra batida. Um ruído de bocas a mastigar cereais crocantes vai ecoando. As pedras rolam, as pernas rolam, vai rolando a distância debaixo dos pés. O que te move? Saberes-te capaz de atingir uma meta, de cumprir uma etapa, de chegar ao fim de um caminho qualquer. Lá ao longe, bem ao fundo, avistas o cerro. Nuvens cinzentas pairam sobre ele, cobrem-no de sombra. Circulam, parecem querer dançar: a dança da chuva. O teu coração acelera ao ritmo do cansaço. Mais uma subida ofegante. Inspiras agora a plenos pulmões e consegues farejar os odores da manhã campestre. Há ervas que libertam um cheiro verde húmido. Narinas adentro, entram vestígios de bosta, cheira a estrume. Verde, castanho, cinzento: haverá fogo? Cheira a fumo. São pastos que se queimam no vagar da manhã. Atravessas agora um troço de estrada. Um tractor, motores furiosos, passa por ti. O arame farpado que te ladeia impede-te de “caçar” laranjas. Um longo campo de laranjeiras persegue-te por minutos. Rente à estrada, na portada de casa, um idoso está na plateia. Decides oferecer-lhe um “bom dia”. Ele retribui com um “bom dia, menina”, ainda surpreso por ser o primeiro cumprimento que recebe do pelotão. Aproxima-se o fim. Últimos passos embalados pelo cantarolar de pássaros dispersos. Em coro, chilreiam celebrando a alegria de uma manhã de Sol. Numa tabuleta de madeira lê-se “9 Km”. Está quase, tu és capaz. Um derradeiro pensamento ocorre-te: E se em vez de anos, contássemos a vida em quilómetros? Tão mais interessante seria, quão mais longas iriam parecer tantas vidas de breves anos. Tão curtas seriam tantas outras, a maioria. Quantos centenários morrerão sem ter visto sequer o mar? À chegada, as pernas latejam, mas todos os caminhos vão dar à vida. E a partir daqui, à vista desarmada, ela parece-te uma longa vida.
Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...

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