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Dá-me colo

Sensação boa a cumplicidade que se estabelece com alguém que está doente. Ficamos um degrau acima, num nível superlativo de superioridade, mas na aflição tudo se estreita, sobretudo os laços entre as pessoas. E se eu for a mãe e a pessoa doente o meu filho, o colo alarga-se, capaz de acolher o mundo. Encontra-se tempo que não existe, debaixo das mantas às quatro da tarde. Surreal ver o mundo correr lá fora, numa miragem espreitada da janela do quarto. Dentro de casa, as horas esticam, ficam gigantes. Há mais minutos, muitas vezes sessenta, numa só hora longe do trabalho, à distância dos esforços que pedem pressa. Todos os filhos são bebés quando estão doentes. Mesmo que tenham 30 ou 40 anos, naquele momento voltam a ter fraldas e faces rosadas e cheirinho de leite morno. E revelam-se em nós talentos escondidos. De repente, somos exímios narradores das histórias de encantar. Recordamos como éramos felizes a ver desenhos animados. Paramos e percebemos porque tudo parecia tão fácil. Nesse tempo, quando éramos da altura da mesa da cozinha, apreciávamos o mundo devagar, uma coisa de cada vez. Cuidar de um filho doente ajuda a cuidar de nós. No rosto da criança, um espelho transporta-nos à infância perdida, ao menino(a) que esquecemos cá dentro, aprisionado numa bola de sabão. E, de repente, sem nos darmos conta, puf, a bolha rebenta e lá saltamos nós, criança renascida com um menino(a) nos braços. É a vida a dar-nos uma segunda chance para desfrutar da velha infância, paraíso das fadas e dos humanos capazes de serem felizes para sempre.

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