Avançar para o conteúdo principal

Dá-me colo

Sensação boa a cumplicidade que se estabelece com alguém que está doente. Ficamos um degrau acima, num nível superlativo de superioridade, mas na aflição tudo se estreita, sobretudo os laços entre as pessoas. E se eu for a mãe e a pessoa doente o meu filho, o colo alarga-se, capaz de acolher o mundo. Encontra-se tempo que não existe, debaixo das mantas às quatro da tarde. Surreal ver o mundo correr lá fora, numa miragem espreitada da janela do quarto. Dentro de casa, as horas esticam, ficam gigantes. Há mais minutos, muitas vezes sessenta, numa só hora longe do trabalho, à distância dos esforços que pedem pressa. Todos os filhos são bebés quando estão doentes. Mesmo que tenham 30 ou 40 anos, naquele momento voltam a ter fraldas e faces rosadas e cheirinho de leite morno. E revelam-se em nós talentos escondidos. De repente, somos exímios narradores das histórias de encantar. Recordamos como éramos felizes a ver desenhos animados. Paramos e percebemos porque tudo parecia tão fácil. Nesse tempo, quando éramos da altura da mesa da cozinha, apreciávamos o mundo devagar, uma coisa de cada vez. Cuidar de um filho doente ajuda a cuidar de nós. No rosto da criança, um espelho transporta-nos à infância perdida, ao menino(a) que esquecemos cá dentro, aprisionado numa bola de sabão. E, de repente, sem nos darmos conta, puf, a bolha rebenta e lá saltamos nós, criança renascida com um menino(a) nos braços. É a vida a dar-nos uma segunda chance para desfrutar da velha infância, paraíso das fadas e dos humanos capazes de serem felizes para sempre.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)