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Quatro Primaveras

Sou tua mãe mas não te vi nascer. Pode parecer estranho, mas foi assim que aconteceu. Há quatro anos, era de noite. Ainda não era Primavera, mas estava um clima ameno, primaveril. No relógio de parede, o ponteiro pequeno estava fixo no número um e o grande apontava para o oito. Eram uma e quarenta da manhã de terça-feira, dia 11 de Março de 2008. Quando choraste pela primeira vez, eu não te ouvi. Ferrada num sono profundo, não te ouvi, nem te vi, nem peguei em ti ao colo, nem chorei de felicidade por sentir uma emoção nova, tão rara, que pode acontecer uma única vez, ou poucas vezes na vida. Lamento não ter sentido as dores. Lamento, ainda mais, não ter conhecido a explosão de emoções que as sucedem. Estava anestesiada, esventrada e longe do meu bebé. Lamento tudo isso, mas sei que foi por bem. Os corpos escondidos por detrás de todas aquelas batas brancas, sem nome, sem voz, quase sem rosto, salvaram-te a vida. Bendita seja a medicina. Despertei nauseada, horas depois. De um lado, estava ligada a um aparelho que de tempos a tempos me apertava o braço fazendo ecoar as batidas do meu coração num pip, pip, irritante. Do outro, um saco de soro, pendurado num cabide metálico, soltava, gota a gota, o líquido transparente que escorregava por um tubo ligado a uma agulha espetada na minha mão. Sentia-me moribunda. Num laivo de consciência, lembrei-me porque estava ali: “A bebé, será que nasceu?”. Assumi o facto de não a ter perto de mim como um mau presságio, algo de mau teria acontecido. Minutos depois, uma enfermeira entrou no quarto. Era uma senhora de cor. Ao aproximar-se, percebi que carregava um minúsculo bebé nos braços. Dirigiu-se a mim: - “Acho que é sua filha!”. Ainda com aquele “acho” a ecoar-me na cabeça, estendi os braços pronta para aceitar a criança. Apressei-me a tentar reconhecer qualquer parecença física. Sem demora, fixei-me nos dedos das mãos, compridos e delicados como os meus. Foi quanto bastou. A tua cabeça, do tamanho de uma laranja, cabia-me na palma da mão. Um sopro de vento mais forte seria suficiente para te derrubar. Eras um peso pluma, chamavam-te mascote. Eras comprida e leve. Quarenta e oito centímetros vezes dois quilos e cem. Nas primeiras horas, tinha medo de pegar em ti. De súbito, o peso que se libertou do corpo alojou-se na alma. Para sempre. Em alerta permanente, o meu corpo conseguia adormecer nas duas horas que intervalavam o teu mamar. Só o corpo adormecia. O cérebro, inquieto, estreou uma vigília que dura até hoje. Que vai durar para sempre. Há quatro anos eu não sabia ser mãe. Era como se me estreasse numa nova profissão. Foi como o primeiro dia na escola primária ou o primeiro dia na universidade, ou o primeiro dia num novo emprego. Tenho mais vinte e oito anos que tu, mas há dias em que me sinto da tua idade. Antes de ti parece que não existia. Antes de ti não havia nada. Escrevo estas palavras enquanto dormes. Escrevo estas palavras antes de cumprir o meu ritual de boa noite. Daqui a pouco, com pezinhos de lã, vou entrar no teu quarto. Vou sentar-me à beira da cama e aconchegar-te a manta. Depois, vou encostar o nariz ao teu rosto, fechar os olhos e inalar o teu cheiro, antes de selar o momento com um beijo. Esta noite, daqui a pouco, enquanto dormes, vais completar quatro anos. E eu, antes de apagar a luz do teu quarto, vou dar-te os parabéns, num sussurro baixinho, ao ouvido. E mesmo que não me oiças, mesmo que amanhã não te lembres de nada, vou pedir por ti dois desejos: que nunca pares de correr atrás da felicidade e que cresças muito, até seres do tamanho dos teus sonhos. Parabéns, querida Júlia!

Comentários

  1. Anseio muito em conhecer a tua princesa!Saudades grandes...Muitos beijinhos e parabens por ter uma menina tão linda como a mãe.Da prima que não te esquece Marta

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  2. Obrigada Martinha,
    Esta prima também nunca se esqueceu dos bons tempos de infância que passámos juntas. Havemos de reencontrar-nos em breve, estou certa. Beijo enorme.
    Sofia

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