Avançar para o conteúdo principal

Na fronteira

O Guadiana tem dois amores, duas margens que podem acenar-se, que podem trocar saudações em línguas diferentes. São dois países separados por um rio, unidos por um ferry, há uns anos também por uma ponte. Num abraço de betão estreitaram-se as margens, português e castelhano misturam-se muito mais desde então, num cocktail de vozes que não deixam as ruas silenciar-se. La chica que habla español chama-se Ayamonte. É uma terra pacata, onde os sábados despertam com a euforia do mercado. Bancadas de legumes alinhados por cores enchem os olhos de apetite. Enormes peças de pescado ainda a saltar de fresco são um convite ao convívio em redor do fogareiro. E há a carne, um regalo às pupilas, um deleite para as papilas: el cordero , el cerdo , la ternera . Nas esplanadas, a qualquer hora do dia, bebem-se cañas e picam-se tapas. E no vagar do fim-de-semana repara-se nos pés calçados de novo da senhora que acabou de sair da mítica sapataria de esquina. Nas gasolineiras, de manhã à noite, há sempre filas de carros de matrícula portuguesa que esperam o tempo que for preciso para poupar vinte ou mais cêntimos por litro. Em tempos de crise, vale tudo. A menina que fala português desde o baptismo que se chama Vila Real (de Santo António). Terra de gente calma onde o trabalho se faz sem pressa. Talvez por isso tenham tempo para cantarolar. Em todas as frases, cada palavra tem um timbre aciganado, o eco de uma nota musical: - “Onde vaiiiiiiis?”. - “Vou à ruaaaaaaaa!”. Seja Verão ou Inverno, o Sol aqui parece sempre de meio-dia. Ilumina a pique as ruas, desenhadas a régua e esquadro, que geometricamente se cruzam. À beira-rio, um marquês de pedra espreita o perigo, talvez aguarde firme e hirto até um novo terramoto. O seu nome, tatuado como um graffitti, celebra-se nas ruas, desde a Praça central à farmácia pombalina. Deve ter sido um bem-amado por cá. Na rua das lojas, as fachadas vestem-se de atoalhados. Toalhas de praia e de mesa convivem lado a lado na companhia de panos de cozinha de várias cores e motivos. Há pijamas a serpentear a cada lufada de vento e peúgas brancas (pés de gesso) aos molhos dentro de cestas. Manéis e Manolos, Marias do Carmo e Carmencitas espreitam montras e tomam cafés ao ar livre, debaixo de um céu quase sempre limpo de nuvens. Os de cá têm saudades de lá, os de lá não conhecem a palavra saudade. A um rio de distância, o Guadiana, trocam-se juras de amor em duas línguas, experiências de vida em dois países. E enquanto houver paz, a de um rio que corre serenamente para o mar, vão continuar a comprar-se, cá e lá, bugigangas com a mesma moeda de troca.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...

RECONFINAMENTO - III

Os dias passam velozes mas o tempo parece não avançar. As soluções demoram, ninguém trava a morte, o cárcere dos dias é uma asfixia doméstica sem direito a balões de oxigénio. Resta-nos fechar os olhos e apelar à imaginação: estar aonde não estamos, ir aonde não vamos. O pensamento pode ser o pior ou o nosso melhor aliado. As saudades têm nome e rosto e os beijos e abraços são promessas dolorosas por cumprir. Queremos todos o mesmo. O que mais desejamos é que este tempo passe e o mundo avance para outra realidade. Uma vida nova, sem distâncias de pele, na qual nos possamos voltar a cheirar e tocar ao sabor do desejo.

Quando a avó me levava ao parque

Quando a minha avó me levava ao parque, eu tinha cinco anos e ainda sabia ser feliz. A avó levava sempre a minha mão bem apertada pelo medo de não me deixar fugir. Esses dias eram sempre finais de tarde de verão, daqueles que o Sol gosta de prolongar até que resolve esconder-se. Depois de jantar, lá íamos nós, rua acima, pela fresquinha – como ela dizia – agradada com a brisa que antecede o anoitecer. Lá em casa, jantávamos cedo, às seis da tarde já a comida estava na mesa. Era assim por causa do avô. Ele chegava das obras com a roupa e as botas pesadas de cimento e tomava sempre banho antes de ocupar o seu lugar cativo à mesa. Depois, com as mãos espessas e ásperas de tanto acartar baldes de massa, cortava uma fatia de pão. Vida dura a do avô. As obras começavam sempre cedo, sobretudo no verão, para fugir à braseira estival. Vida dura a da avó. Uma vida feita de espera e de cuidar dos outros. Mas nem um lamento. Daquela boca só saíam jóias e rebuçados. Daquelas mãos, só carinho. Da...