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Desastre celular

Caminhava completamente desengonçado, como se cada um dos ossos fosse mais disforme que o próprio rosto. Rente à estrada, debaixo de um céu pesado, carregado de chuva, caminhava de mochila às costas, meio rapaz, meio homem, meio monstro, sem idade certa. De repente, hesita o passo, pára, parece querer precipitar-se sobre a estrada. Por instantes chego a temer um suicídio. Falso alarme. Ele trava. Com olhar de louco, absorve de uma rajada todo o quarteirão. Estranho ser, carregando sobre os ombros o peso de tamanha fealdade, carga maior que a da mochila que se adivinha meio vazia. Esta figura (im)perfeita de contos de meia-noite, segue viagem, estrada fora, perco-lhe o rasto, fica-me apenas a memória. Jamais esquecerei ter visto um ser humano de traços tão contraditórios. Só por capricho, apetece-me afrontar a crença: feitos à imagem e semelhança do Senhor? Se assim fosse, porquê existir a perfeição e a aberração, o belo e o mostrengo e permitir que ambos se cruzem e convivam até ao pico da dor? Na ausência de outras respostas, o mais fácil é aceitar uma explicação natural: ao nascer, podemos resultar de uma aliança perfeita de duas células, ou sermos um perfeito desastre celular com consequências traumáticas irreversíveis.

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...