Avançar para o conteúdo principal

Desastre celular

Caminhava completamente desengonçado, como se cada um dos ossos fosse mais disforme que o próprio rosto. Rente à estrada, debaixo de um céu pesado, carregado de chuva, caminhava de mochila às costas, meio rapaz, meio homem, meio monstro, sem idade certa. De repente, hesita o passo, pára, parece querer precipitar-se sobre a estrada. Por instantes chego a temer um suicídio. Falso alarme. Ele trava. Com olhar de louco, absorve de uma rajada todo o quarteirão. Estranho ser, carregando sobre os ombros o peso de tamanha fealdade, carga maior que a da mochila que se adivinha meio vazia. Esta figura (im)perfeita de contos de meia-noite, segue viagem, estrada fora, perco-lhe o rasto, fica-me apenas a memória. Jamais esquecerei ter visto um ser humano de traços tão contraditórios. Só por capricho, apetece-me afrontar a crença: feitos à imagem e semelhança do Senhor? Se assim fosse, porquê existir a perfeição e a aberração, o belo e o mostrengo e permitir que ambos se cruzem e convivam até ao pico da dor? Na ausência de outras respostas, o mais fácil é aceitar uma explicação natural: ao nascer, podemos resultar de uma aliança perfeita de duas células, ou sermos um perfeito desastre celular com consequências traumáticas irreversíveis.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...

RECONFINAMENTO - III

Os dias passam velozes mas o tempo parece não avançar. As soluções demoram, ninguém trava a morte, o cárcere dos dias é uma asfixia doméstica sem direito a balões de oxigénio. Resta-nos fechar os olhos e apelar à imaginação: estar aonde não estamos, ir aonde não vamos. O pensamento pode ser o pior ou o nosso melhor aliado. As saudades têm nome e rosto e os beijos e abraços são promessas dolorosas por cumprir. Queremos todos o mesmo. O que mais desejamos é que este tempo passe e o mundo avance para outra realidade. Uma vida nova, sem distâncias de pele, na qual nos possamos voltar a cheirar e tocar ao sabor do desejo.

Quando a avó me levava ao parque

Quando a minha avó me levava ao parque, eu tinha cinco anos e ainda sabia ser feliz. A avó levava sempre a minha mão bem apertada pelo medo de não me deixar fugir. Esses dias eram sempre finais de tarde de verão, daqueles que o Sol gosta de prolongar até que resolve esconder-se. Depois de jantar, lá íamos nós, rua acima, pela fresquinha – como ela dizia – agradada com a brisa que antecede o anoitecer. Lá em casa, jantávamos cedo, às seis da tarde já a comida estava na mesa. Era assim por causa do avô. Ele chegava das obras com a roupa e as botas pesadas de cimento e tomava sempre banho antes de ocupar o seu lugar cativo à mesa. Depois, com as mãos espessas e ásperas de tanto acartar baldes de massa, cortava uma fatia de pão. Vida dura a do avô. As obras começavam sempre cedo, sobretudo no verão, para fugir à braseira estival. Vida dura a da avó. Uma vida feita de espera e de cuidar dos outros. Mas nem um lamento. Daquela boca só saíam jóias e rebuçados. Daquelas mãos, só carinho. Da...