Quantas vezes o sítio onde vivemos não é escolha mas destino? Soma de contas mal feitas, adições ou subtracções mal resolvidas, erros de cálculo, opções que sobram nos destroços, no entulho que resta de tudo o que um dia idealizámos. E aprendemos a aceitar. Que remédio. A adaptação fica-nos tão bem. É um fato engomado que nos assenta sempre bem. Adaptar-nos é a última das sortes, mesmo quando a vontade não vem, nem com o passar do tempo. O tempo, o tempo. Com ele acabamos por aceitar tudo, até a morte que sabemos certa e que nos espera a todos sem segunda opção.
Hoje o vento não me está de feição. Nem esta paz fluvial que traz cheiro a maresia é capaz de me aquietar os sentidos. Da minha janela ao mar são poucos quilómetros. E isso poderia bastar-me para sorrir. O sol que raia lá fora a espaços por entre as nuvens que dançam em seu redor poderia bastar-me. O vento que passa, que assobia vaidoso poderia bastar-me. Por aqui, não há filas de carros a buzinarem-me aos ouvidos. Não há demoras para chegar ao trabalho. E isso, apenas isso, poderia bastar-me. Este paraíso da terceira idade onde habito não condiz comigo. Somos como cores diferentes mal conjugadas, somos como a bandeira, vermelho e verde, contrastamos ainda que ninguém note. Eu sou alvorada e aqui vive-se ao ritmo do pôr-do-sol. Eu sou luzes e avenidas e carros a circular com pessoas lá dentro. E sou prédios a tocar no céu e as pessoas que trabalham lá em cima e tantas outras cá em baixo a circular. E mais carros e mais pessoas, um formigueiro urbano, a vida a mover-se, a vida a acontecer, na rua o centro do mundo. Sou vida desfrutada ao limite, sorvida, sugada, escorropichada até ao fim. Quero morrer cansada, finar-me de exaustão, de solas gastas e bolsos vazios e alma cheia de gozo. A minha herança será feita de memórias. Serei recortes espalhados por álbuns e livros, folhas soltas e cadernos, vestígios de pensamentos arquivados em suportes digitais.
Esta cidade é um forte, muralhas por todo o lado. Mas é a cidade que me acolhe e que me encolhe sobretudo os sonhos. Não sou rainha, nem sei se tenho rei. Nesta fortaleza há quem almeje uma invasão. E quando os portões se derrubarem, cavalos e tropas a galope, alguém vai conseguir escapar sem deixar rasto. Nesse dia, em liberdade, a gaivota criada no galinheiro vai finalmente descobrir que afinal o céu é o limite, que afinal até sabe voar.
Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...

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