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Conto "Choque frontal" - página 7

Depois, rezava. Ao contrário de mim, ela tinha uma fé inabalável. Sucumbia ao cansaço e acabava por adormecer, sempre de luz acesa, confidenciou-me mais tarde. Só quando deixei de correr perigo de vida é que fui transferido para o hospital da minha área de residência. No hospital de Faro, os meus filhos aguardavam, ansiosos, o nosso reencontro. Uma visita de cada vez, primeiro entrou a minha mulher, depois o meu filho e, por fim, a minha filha. Foi ela a única capaz de me contar mais tarde o que sentiu ao ver-me naquele estado. Disse-me que estava desfigurado, meio amarelado e fez-lhe imensa confusão ver-me sem óculos e sem dentes. Até a placa que eu usava na altura ficou danificada devido ao acidente. Segundo me disse, como não conseguia falar muito, fiz-lhe festas na mão que ela apoiara sobre a cama. E ficámos ali, escassos minutos, somente a contemplar o olhar um do outro, como se em silêncio fossemos capazes de dizer todo o amor que sentíamos. Os dias pareciam anos e a esse mesmo ritmo eu ia melhorando. O ciclo da vida continuava todos os dias do lado de fora da janela do hospital. E sem que me desse conta da azáfama habitual, chegou a noite de Natal. Reunidos num quarto de hospital, não houve festa nem trocámos presentes, mas estávamos ali os quatro, unidos, todos vivos. E apesar da tristeza, que se impunha como uma cortina no lugar onde nos encontrávamos, sei que naquela noite todos reconsiderámos a importância de estar em família nas épocas festivas. Sem o brilho da árvore a cintilar, sem a mesa repleta de iguarias, sem amontoados de fitas coloridas e papel de embrulho, brindámos ao Natal com sorrisos sinceros e votos renovados de esperança num amanhã melhor. Quando comecei a poder receber outras visitas, as tardes passavam mais depressa. Pessoas de quem eu já nem me lembrava foram aparecendo. Gostava de ser acarinhado, mas questionava-me muitas vezes sobre o sentimento que movia toda aquela gente até ali. Muitas daquelas pessoas nunca tiveram disponibilidade para uma visita de cortesia durante todo o tempo em que estava feliz, ágil, enérgico, cheio de vontade de conversar com alguém. No entanto, assim que algo de ruim me aconteceu, acorreram rapidamente, como se tivessem medo que me fosse embora de vez sem me despedir.

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FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

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Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)