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Conto "Choque frontal" - página 7

Depois, rezava. Ao contrário de mim, ela tinha uma fé inabalável. Sucumbia ao cansaço e acabava por adormecer, sempre de luz acesa, confidenciou-me mais tarde. Só quando deixei de correr perigo de vida é que fui transferido para o hospital da minha área de residência. No hospital de Faro, os meus filhos aguardavam, ansiosos, o nosso reencontro. Uma visita de cada vez, primeiro entrou a minha mulher, depois o meu filho e, por fim, a minha filha. Foi ela a única capaz de me contar mais tarde o que sentiu ao ver-me naquele estado. Disse-me que estava desfigurado, meio amarelado e fez-lhe imensa confusão ver-me sem óculos e sem dentes. Até a placa que eu usava na altura ficou danificada devido ao acidente. Segundo me disse, como não conseguia falar muito, fiz-lhe festas na mão que ela apoiara sobre a cama. E ficámos ali, escassos minutos, somente a contemplar o olhar um do outro, como se em silêncio fossemos capazes de dizer todo o amor que sentíamos. Os dias pareciam anos e a esse mesmo ritmo eu ia melhorando. O ciclo da vida continuava todos os dias do lado de fora da janela do hospital. E sem que me desse conta da azáfama habitual, chegou a noite de Natal. Reunidos num quarto de hospital, não houve festa nem trocámos presentes, mas estávamos ali os quatro, unidos, todos vivos. E apesar da tristeza, que se impunha como uma cortina no lugar onde nos encontrávamos, sei que naquela noite todos reconsiderámos a importância de estar em família nas épocas festivas. Sem o brilho da árvore a cintilar, sem a mesa repleta de iguarias, sem amontoados de fitas coloridas e papel de embrulho, brindámos ao Natal com sorrisos sinceros e votos renovados de esperança num amanhã melhor. Quando comecei a poder receber outras visitas, as tardes passavam mais depressa. Pessoas de quem eu já nem me lembrava foram aparecendo. Gostava de ser acarinhado, mas questionava-me muitas vezes sobre o sentimento que movia toda aquela gente até ali. Muitas daquelas pessoas nunca tiveram disponibilidade para uma visita de cortesia durante todo o tempo em que estava feliz, ágil, enérgico, cheio de vontade de conversar com alguém. No entanto, assim que algo de ruim me aconteceu, acorreram rapidamente, como se tivessem medo que me fosse embora de vez sem me despedir.

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Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

VERSÃO 4.5

Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...