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Conto "Choque frontal" - página 1

Naquela manhã, quando saí de casa, nunca imaginei que pudesse não regressar ao anoitecer. Às seis e meia daquele sábado, chovia torrencialmente quando o toque irritante do despertador de corda me fez abrir os olhos. Para meu espanto, perante tamanho ruído, lá em casa mais ninguém acordou. Ao meu lado, na cama, a minha mulher dormia com gosto. O seu rosto não exibia qualquer ruga, a sua mente adormecida não conseguia antever qualquer sobressalto iminente. Continuava a dormir e a sonhar que ainda podíamos ser felizes para sempre. Naquela manhã de Novembro, faltava um mês para o Natal. E os meus filhos, que ficaram a dormir quando sai de casa, não podiam sequer imaginar que iriam passar a consoada num local completamente diferente do habitual. Lamento profundamente nunca ter sido dado a manifestações espontâneas de carinho. Hoje, ainda me lamento por nessa manhã ter seguido viagem sem lhes dar um beijo. A minha mulher e os meus filhos haveriam de ter gostado que me despedisse deles. Tive vontade de o fazer, mas desisti logo que pensei que afinal ia só a Lisboa tratar de negócios. Para quê tanta lamechice se logo à noite estaria de volta para jantar tranquilamente com toda a família? Naquela manhã, quando bati com a porta do carro e coloquei o cinto de segurança, antes de dar à chave, eu tinha quarenta anos e era capaz de imaginar outros tantos de vida à minha frente. De pé já firme no acelerador, a estrada começou a estender-se diante dos meus olhos. Esforçava-me por seguir a orientação dos traços, ora contínuos ora descontínuos, entrecortados pelos movimentos semi-circulares dos limpa-pára-brisas, quando me apercebi que o rádio, o meu único companheiro de viagem, tinha ficado mudo. Comecei a antever trezentos quilómetros de silêncio, do Algarve à capital, com as pálpebras a pesar cada vez mais sobre os olhos ainda carregados de sono. Solidão, silêncio, a escuridão dos olhos a fechar-se, uma antevisão da morte que me espreitava ao dobrar a curva. Ao estrondo metálico de guerra seguiu-se o profundo silêncio da escuridão. Depois disso, uma súbita amnésia, um vazio total de pensamentos. Só me lembro de tentar abrir os olhos, como se quisesse gritar. Numa espécie de alucinação, na qual não me sabia acordado, tenho uma vaga ideia de ver luzes azuis intermitentes. Hoje sei que eram as sirenes a girar à minha volta. Nesse instante, o meu corpo já não era meu. Era um pedaço de carne esmagado entre um amontoado de chapa e o que restava dos estofos. Havia um homem moribundo encarcerado dentro de um carro, mas já não era eu. Tinha os braços pendidos sobre o corpo, a cabeça tombada e os óculos esmagados sobre o rosto ferido. De boca aberta, revirava os olhos indeciso entre a vida e a morte. O cenário não parecia real, mas aquele homem afinal era mesmo eu. Enquanto as dores húmidas de sangue morno me puxavam para o sono, gemia baixinho. E perdido no meio da agonia, tenho a vaga ideia de uma voz tentar insistentemente chamar-me de volta à vida. - Sr. Eusébio, consegue ouvir-me? Sr. Eusébio, se consegue ouvir-me, abra os olhos! (...)

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