- Sr. Eusébio, já acordou? – Irrompeu uma voz feminina quarto adentro.
Enquanto pestanejava, esforçando-me por permanecer com os olhos abertos, vislumbrei uma mulher loira de bata branca. A enfermeira Elsa era uma jovem na casa dos trinta anos, com bons modos e muito bom aspecto.
Saudei a sua presença com um gemido, a única forma confortável de me manifestar. E ela continuou a fazer-me perguntas de circunstância, sabendo de antemão que as respostas seriam pouco mais que lamentos monossilábicos.
- Então, como é que se sente? Está com dores? Quer que lhe molhe os lábios?
Eu assenti piscando os olhos repetidamente como se quisesse acenar com a cabeça. Tinha a boca tão seca que até a língua parecia feita de borracha. Delicadamente, ela mergulhou dentro de um copo de água a compressa enrolada num pauzinho de madeira e começou a humedecer-me os lábios.
Ia começar a fazer um esforço para tentar falar quando ela me dissuadiu:
- Não se canse, Sr. Eusébio. Procure descansar. Não se preocupe que nós estamos aqui para tratar de si.
Depois disso, trocou a saqueta de soro, ajeitou-me os lençóis e mediu a temperatura colocando-me o termómetro digital dentro do ouvido. Vi-a tirar uma série de apontamentos, antes de se retirar.
- Até já, Sr. Eusébio. Daqui a pouco o doutor já vem fazer a ronda.
Aos poucos fui voltando a tomar consciência do meu corpo. Sentia os braços e as pernas amarrados. Quando o médico veio por fim visitar-me, percebi que estava parcialmente engessado. Num tom cheio de formalidades, informou-me que tinha já sido operado a múltiplas fracturas expostas e que numa delas, localizada na perna esquerda, havia uma espécie de armadura de ferros que me atravessava o osso de lado a lado. Eu estava fragilizado e os médicos esconderam-me o pior dos diagnósticos. Fiquei a saber mais tarde que todos eles achavam que eu estava condenado a ficar refém de uma cadeira de rodas para sempre. Felizmente, a medicina às vezes também se engana a nosso favor.
Lá fora, no mundo real, a vida continuou sem mim. Os meus filhos regressaram à escola e a minha mulher teve que assumir o comando da nossa empresa. Que remédio, ser patrão tem por vezes um sabor agridoce. Ainda mais quando se tem um negócio de família de onde provém todo o sustento. Temos todo o poder nas mãos, mas nem quando fraquejamos o podemos largar. Se o fizermos, não há colchão que ampare a queda. Desistir nunca é uma opção.
Surpreendeu-me a minha mulher. O medo fê-la superar-se pela primeira vez na vida. O medo e o amor, de mãos dadas, a provar que são as únicas alavancas que nos movem, que nos fazem tomar decisões, mesmo quando não sabemos o que fazer. Psicologicamente apoiada nos livros de auto-ajuda, que tanto gostava de ler, ela lá foi repetindo e colocando em prática as máximas que melhor se enquadravam à situação. “É melhor decidir mal do que não decidir”, repetia todos os dias, como um mantra, antes de qualquer passo mais hesitante.
Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...
Bom, não sei o que virá por aí mas que já gosto muito do que li, já!
ResponderEliminarMuito obrigada :)
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