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Conto "Choque frontal" - página 10

Eu não morri, por isso tornei-me mais forte. E, contrariando todos os médicos nos seus piores vaticínios, voltei a andar pelo meu próprio pé, pouco mais de um ano após o acidente. Também voltei a conduzir. Comprei um carro novo e afoitei-me logo à estrada, recusando-me prontamente a guardar qualquer espécie de trauma. Em vez de traumatizado, fiquei foi frustrado por tudo aquilo que deixei de poder fazer. Por inúmeras vezes, dei comigo a sonhar acordado: recordava aquele jovem atlético que corria na praia cortando o vento, que praticava judo derrubando astutamente o adversário, que podia dançar toda a noite nos bailes de Verão, que tinha duas pernas ágeis e saudáveis que o poderiam transportar velozmente mundo fora. Depois, olhava-me ao espelho e era apenas o reflexo de um homem sofrido a coxear rumo à velhice, apoiado por uma bota ortopédica compensada e uma muleta. FIM

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)