Eu não morri, por isso tornei-me mais forte. E, contrariando todos os médicos nos seus piores vaticínios, voltei a andar pelo meu próprio pé, pouco mais de um ano após o acidente. Também voltei a conduzir. Comprei um carro novo e afoitei-me logo à estrada, recusando-me prontamente a guardar qualquer espécie de trauma. Em vez de traumatizado, fiquei foi frustrado por tudo aquilo que deixei de poder fazer. Por inúmeras vezes, dei comigo a sonhar acordado: recordava aquele jovem atlético que corria na praia cortando o vento, que praticava judo derrubando astutamente o adversário, que podia dançar toda a noite nos bailes de Verão, que tinha duas pernas ágeis e saudáveis que o poderiam transportar velozmente mundo fora. Depois, olhava-me ao espelho e era apenas o reflexo de um homem sofrido a coxear rumo à velhice, apoiado por uma bota ortopédica compensada e uma muleta.
FIM
Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...
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