- Sr. Eusébio, é hoje o grande dia! Vamos lá pôr de pé e dar uns passinhos.
Senti automaticamente um nervoso miudinho, medo e adrenalina misturados numa emoção que me atravessava o corpo. Era como se fosse aprender a dar os primeiros passos e não tivesse a certeza de ser capaz de o fazer. Com o apoio de um andarilho, consegui manter-me em pé. A força com que os meus braços agarravam o metal era tanta que todo o corpo parecia estremecer. O impulso que se seguiu fez-me dar um passo em frente. A família aplaudiu emocionada. Até os olhos do fisioterapeuta deixaram transparecer uma emoção feita de vitória. Aquele foi o primeiro passo do resto da minha vida.
Não tardei em poder descer o elevador para ir tomar o café à rua. Já não suportava a bica fria que me traziam diariamente tapada com o pires. A tentativa era boa, mas não resultava. O café estava invariavelmente frio quando me tocava os lábios. Sentava-me perto do balcão e conseguia automaticamente perceber surpresa e curiosidade nos olhares que me fitavam de alto a baixo.
- Olha o coxo! – Saiu-se uma vez um amigo, assim que me viu, pensando estar a utilizar um adjectivo carinhosamente brincalhão.
Aquele “coxo” teve o sabor metálico de uma espada que se alojou no peito. Ainda assim, sorri, como faço sempre que não me apetece responder a quente e dizer a primeira asneira que me vem à cabeça. Há muito que me habituara a sorrir sempre que me apetecia chorar.
A minha mulher só teve coragem de me mostrar as fotografias do carro quase um ano depois. Tinham sido tiradas no dia em que acompanhou a peritagem da seguradora realizada na sucata. Naquele cemitério de carros havia vestígios de morte, destroços de vidas interrompidas por toda a parte. Tive dificuldade em reconhecer naquela lata branca amolgada algo que me fizesse lembrar o meu carro. Fiquei absorto em cada detalhe revelado em cada uma das fotografias. A minha filha, que também tinha estado presente naquela ida à sucata, enumerou os objectos que ainda conseguiu salvar do interior da viatura: uma moeda de cem escudos e uma caneta de estimação que eu carregava sempre dentro do bolso da camisa. Tal como há um ano atrás, a mãe repreendeu-a por considerar um perfeito disparate querer preservar recordações de um acontecimento tão trágico. Mas a menina, teimosa, levou a sua avante e guardou numa caixinha secreta aqueles seus tesouros. Maria acreditava que devemos acarinhar tudo o que nos acontece na vida: os bons e os maus momentos são os responsáveis por aquilo em que nos tornamos, daí que mereçam todos, sem excepção, ser lembrados.
Dizem-me frequentemente que ainda tenho cara de menina, que ainda sou nova, que ainda tenho a vida à minha frente. Contudo, face à cronologia, é-me inevitável constatar que mais de metade do tempo que me foi concedido já passou. O que me resta já será provavelmente menos. Se isso me inquieta? Não em termos de medo, mais em termos de pressa. Já não é pressa de viver mas de realizar, de me realizar. Apesar de já ter plantado árvores, tido filhos e publicado livros, sinto-me ainda distante da potencialidade plena do meu propósito existencial. O que me falta realizar então? Talvez plantar mais árvores e escrever mais livros, já que a possibilidade de gerar filhos tem prazo de validade e a energia vital para os cuidar vai esmorecendo. Tudo o que me falta fazer parece-me tanto para o tempo que imagino à minha frente. Não cabem tantos livros e filmes e viagens e experiências nas décadas que imagino ainda poder viver. O meu maior conflito interior neste momento é já não ser nova para tanta coi...
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