Avançar para o conteúdo principal

Conto "Choque frontal" - página 9

- Sr. Eusébio, é hoje o grande dia! Vamos lá pôr de pé e dar uns passinhos. Senti automaticamente um nervoso miudinho, medo e adrenalina misturados numa emoção que me atravessava o corpo. Era como se fosse aprender a dar os primeiros passos e não tivesse a certeza de ser capaz de o fazer. Com o apoio de um andarilho, consegui manter-me em pé. A força com que os meus braços agarravam o metal era tanta que todo o corpo parecia estremecer. O impulso que se seguiu fez-me dar um passo em frente. A família aplaudiu emocionada. Até os olhos do fisioterapeuta deixaram transparecer uma emoção feita de vitória. Aquele foi o primeiro passo do resto da minha vida. Não tardei em poder descer o elevador para ir tomar o café à rua. Já não suportava a bica fria que me traziam diariamente tapada com o pires. A tentativa era boa, mas não resultava. O café estava invariavelmente frio quando me tocava os lábios. Sentava-me perto do balcão e conseguia automaticamente perceber surpresa e curiosidade nos olhares que me fitavam de alto a baixo. - Olha o coxo! – Saiu-se uma vez um amigo, assim que me viu, pensando estar a utilizar um adjectivo carinhosamente brincalhão. Aquele “coxo” teve o sabor metálico de uma espada que se alojou no peito. Ainda assim, sorri, como faço sempre que não me apetece responder a quente e dizer a primeira asneira que me vem à cabeça. Há muito que me habituara a sorrir sempre que me apetecia chorar. A minha mulher só teve coragem de me mostrar as fotografias do carro quase um ano depois. Tinham sido tiradas no dia em que acompanhou a peritagem da seguradora realizada na sucata. Naquele cemitério de carros havia vestígios de morte, destroços de vidas interrompidas por toda a parte. Tive dificuldade em reconhecer naquela lata branca amolgada algo que me fizesse lembrar o meu carro. Fiquei absorto em cada detalhe revelado em cada uma das fotografias. A minha filha, que também tinha estado presente naquela ida à sucata, enumerou os objectos que ainda conseguiu salvar do interior da viatura: uma moeda de cem escudos e uma caneta de estimação que eu carregava sempre dentro do bolso da camisa. Tal como há um ano atrás, a mãe repreendeu-a por considerar um perfeito disparate querer preservar recordações de um acontecimento tão trágico. Mas a menina, teimosa, levou a sua avante e guardou numa caixinha secreta aqueles seus tesouros. Maria acreditava que devemos acarinhar tudo o que nos acontece na vida: os bons e os maus momentos são os responsáveis por aquilo em que nos tornamos, daí que mereçam todos, sem excepção, ser lembrados.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)