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Conto "Choque frontal" - página 2

À minha esquerda, do lado de fora da janela estilhaçada, um homem de capacete amarelo sabia o meu nome, apesar de eu não o conhecer. Por que raio haveria de querer falar comigo? E a voz voltava, sumida, longínqua, como um eco que ressoa no fundo de um poço. - Sr. Eusébio, tenha calma, que já o vamos tirar daí. Minto se afirmar que me lembro de todos estes pormenores. Talvez seja apenas o meu inconsciente a falar mais alto. Quem sabe, tudo o que julgo lembrar-me não seja mais do que um amontoado de memórias fabricadas pelas centenas de vezes que já ouvi da boca de outros a minha própria história. Dentro de mim, continuam a ecoar perguntas às quais ninguém me sabe responder: Porquê eu? Como é que aquele acidente me pôde acontecer. Nem Deus, nem nenhum santinho me havia de dar resposta até hoje. Naquela manhã de sábado, eu era ateu. E nem o que dizem ter sido um milagre me fez mudar de ideias. Prefiro acreditar que podemos ter sete vidas como os gatos. O pior é que, feitas bem as contas, eu já esgotei duas ou três. Não posso arriscar muito mais. A partir de agora tenho que medir bem os passos que dou. Passos lentos. Há muito que as minhas pernas se habituaram a medir a vida em passos menores, um de cada vez, devagarinho. Esgotei a minha primeira vida ainda não tinha completado dois anos de idade. A minha mãe costumava ferver água no fogão e nesse dia, curioso, deu-me para espreitar o que havia dentro da panela que estava ao lume. E zás. Ainda hoje a minha mãe conta que estive às portas da morte. As queimaduras eram tão graves que nem permitiam que me alimentasse. Levei meses a ingerir apenas líquidos, sorvidos a muito custo por uma palhinha. Felizmente, o tempo encarregou-se de amenizar os danos causados por aquele desastre. Não fiquei desfigurado nem coisa que o valha. Digamos que não deixei de casar por causa das três ou quatro películas de pele mais fininha que continuam a tatuar-me parte da testa, rosto e braços. Piores, muito piores foram as sequelas daquele malogrado acidente. (...)

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Reportagem # 32

Jornal "Dica da Semana", edição regional Algarve, 29 de Janeiro de 2015

FRIDAY EATS

A refeição que pedala a rua à minha frente vai saciar o cansaço de alguém que trocou horas de fome por uns tostões. A energia que sobra é a da ponta dos dedos. Três toques no ecrã e o jantar está pronto. A marmita verde atravessa a cidade, pela força estoica do homem que não fala português. Também não precisa. Basta tocar à campainha e dizer a palavra mágica de significado universal. Num silêncio solene, digno de um requintado mordomo, abre o saco térmico e serve o jantar. O pobre senhor que ganha uns tostões, hoje sente-se um rei. Espreguiçado no sofá, a lambuzar-se num menu cancerígeno qualquer, reencontra um espasmo de felicidade. Ah, como é boa a sexta-feira! Mham 

PERTENÇA VIRTUAL

Apaixonaram-se ao primeiro clique.  No início, tudo tinha a leveza eufórica da novidade. Tudo tinha o ingénuo encanto do desconhecido. Enquanto deslindavam os detalhes virtuosos da vida privada um do outro, em mensagens infinitas, contemplavam-se teclando, trocando imagens e palavras e emojis. Foram dias áureos de expectativa crescente. Quando será o nosso encontro real? A magia começava a desvanecer-se ao surgir a questão. Alguém não deseja abdicar do perfeccionismo platónico. Camuflados na virtualidade somos todos muito bons. Para quê sair do casulo para dar a conhecer o pior de nós? O melhor é encerrar o assunto enquanto ainda paira a beleza inicial. Um vai-se esfumando e saí de mansinho. As respostas chegam cada vez mais demoradas até não chegarem mais. Encontros românticos são para gente corajosa na vida real. O que aconteceu aqui foi só uma ilusão. A ludibriosa crença de ser possível uma pertença virtual.  (Publicado na revista ESPÚRIA, outubro 2023)