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Conto "Choque frontal" - página 4

Imagino como deve ter reagido, ela que é tão nervosa. Pensou logo no pior, quando lhe confirmaram que eu estava nos cuidados intensivos do hospital de Beja. O que se seguiu foi toda uma família em alvoroço. Desesperada, desfeita em lágrimas, a minha mulher não tardou em buscar conforto junto de amigos chegados. Foram eles que conduziram o carro que em pouco tempo partiu acelerado rumo ao Alentejo. Lá dentro iam também os meus filhos, dois adolescentes, um rapaz e uma rapariga carregando um silêncio com sintomas de orfandade. Naquele dia, Maria e Manuel tinham, respectivamente, dezasseis e catorze anos. Eram uns miúdos porreiros, aliás, são uns miúdos porreiros estes meus filhos. Quando mais tarde tive consciência que podia tê-los deixado desamparados, que podia nunca mais tê-los visto, senti uma dor no peito. Nesse dia, pela primeira vez depois do que me aconteceu, chorei. Não sei ao certo quantas horas estive inconsciente. Apenas sei que foi o tempo suficiente para avistar a mítica luz ao fundo do túnel. Foi como se tivesse estado à porta de um outro mundo onde me recusei a entrar. Tinha demasiada gente à minha espera no planeta terra para me dar ao luxo de embarcar descomprometidamente numa viagem de longo curso. Quando me dei conta de que estava numa cama de hospital, a minha mulher já estava ao meu lado. Com uma voz sumida que mal se conseguia entender entre gemidos, abri subitamente os olhos e ao vê-la reagi: - Eu estava a sonhar que tinha tido um acidente! Com o verde do seu olhar raso de lágrimas, ela pegou-me na mão em silêncio. Devia ter um daqueles nós na garganta que bloqueiam a voz em determinadas ocasiões da vida. O calor da sua mão, o toque da sua pele, foi o suficiente para me fazer sentir seguro. Fosse o que fosse que me tivesse acontecido, ela estava ali comigo e, naquele momento, isso era quanto me bastava para voltar a adormecer tranquilo. Não sabia se tinham passado horas, dias ou meses quando finalmente despertei daquele sono profundo. Sentia-me atordoado. Primeiro que conseguisse focar com precisão qualquer ponto que os olhos fixassem, passavam alguns segundos. Estava rodeado de paredes brancas e ao perceber-me semi-nu, fui subitamente atravessado por um inusitado arrepio de frio. Tentei mexer-me mas as dores não deixaram. Deitado numa cama metálica forrada a lençóis carimbados de caracteres azuis, estava imobilizado, amarrado por cabos ligados a máquinas e tubos de por onde circulava um soro que me entrava no corpo a conta-gotas através de uma agulha espetada numa das veias da mão direita. Sem forças sequer para falar, decidi soltar uns gemidos, numa tentativa que alguém me ouvisse e pudesse acorrer em meu auxílio.

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