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Conto "Choque frontal" - página 6

Entretanto, os dias no hospital passavam com um vagar pintado de infância. Sem as habituais obrigações, horários, prazos e tarefas urgentes por cumprir, consegui aperceber-me de que todos os dias têm efectivamente vinte e quatro horas, suave e lentamente contadas pelo ponteiro dos segundos que pacientemente se arrasta aos tremeliques, milhares de vezes ao longo do dia, contornando em movimentos circulares todos os números e tracinhos desenhados no relógio. As rotinas eram fixadas pela sequência de rituais que se sucediam dia após dia, após dia. Logo pela manhã, o aproximar de um tilintar metálico proveniente do corredor anunciava a chegada do pequeno-almoço. Um copo de leite morno e uma carcaça com manteiga, um menu que se repetia a meio da tarde, à hora do lanche. Quando voltei a ter apetite, estas eram as minhas refeições preferidas. Se me fosse permitido, abdicaria do almoço e do jantar, compostos habitualmente por um caldo deslavado a que chamavam sopa e um prato de carne ou peixe completamente insípidos. Estava totalmente dependente dos outros para sobreviver. Eram os enfermeiros que me levavam a comida à boca, eram também eles que diariamente me faziam a higiene. Ficava sempre constrangido cada vez que cabia a uma mulher a incumbência de me lavar as partes íntimas. Durante muito tempo usei uma algália. Sem que sentisse sequer a vontade, a urina saia-me da bexiga directamente para um saquinho que era trocado uma ou duas vezes ao dia. A saída das fezes era mais trabalhosa. Tinha que pedir a arrastadeira, uma espécie de penico que, mesmo deitado, me colocavam de amparo ao ânus. Depois, quando terminava, alguém me removia a vasilha. Era capaz de sentir o odor quente que permanecia em meu redor durante breves instantes. Era capaz de perceber sintomas de agonia no rosto de quem iria transportar os meus dejectos nauseabundos até ao destino final. Com o tempo, habituei-me. Até que tudo começou a parecer-me normal, até ao ponto de quase me conseguir esquecer de como era tudo antes de ter passado a ser assim. As noites no hospital eram longas. A partir das nove instalava-se um silêncio com rasto de solidão. Como passava grande parte do dia a dormitar, devido aos sedativos que tomava para as dores, à noite tinha dificuldade em conciliar o sono. Era então que pensava na minha mulher e sentia por ela algo que não me lembrava de sentir há muito tempo: saudades. Lá longe, na nossa casa, no nosso quarto, na cama de onde me levantei naquela fatídica manhã, conseguia imaginá-la a tentar adormecer. Sozinha e triste, agarrada à minha almofada a descarregar toda a dor sob a forma de lágrimas.

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